O cheiro a Saudade (reprise)

domingo, 20 de março de 2016 (reprise)

O cheiro a Saudade

"Um novo começo". Era isso que Lolita procurava. Estava agora preparada para seguir em frente. Os seus velhos e adormecidos projetos eram agora alvo de um entusiasmo crescente. Estava radiante por ter tempo, finalmente, para si e para aquilo que é seu. Deixara há pouco a pequena janela.
O sol estava no seu regresso a casa e sentia-se a brisa marinha. Lolita, com o seu vestidinho florido, alegre e esvoaçante, estava agora encavalitada no banco da cozinha a tentar chegar à lata do açúcar!
Tinha o hábito de espetar os seus deditos de boneca naquele mar doce!
O seu avô, sentado na poltrona da sala, sonhava, junto com o seu cachimbo. O jornal nos joelhos escorregava a cada inspiração. Lolita gostava de ficar perto do avô. Gostava de ouvir as suas histórias, de lhe puxar o bigode branco e farto.
Na rua já estava escuro. Agora a noite dava lugar às luzes coloridas que Lolita não se cansava de ver antes de jantar.
A sua irmã mais velha, Eva, tocava piano. Toda a sua figura era angélica. Os seus dedos, quando tocavam nas teclas, pareciam penas brancas, suaves, beijando aquelas peças brancas e pretas . Os seus cabelos eram escuros, longos, macios. Costumava trazê-los soltos a acariciar o seu rosto de pele alva, delicada. Os seus olhos eram de um verde esmeralda, com um brilho cristalino, por vezes cortante.
Eva adorava Lolita. Costumava levá-la a passear à praça para brincar com as gaivotas que por lá passavam. Na praça, o rapaz das pipocas sorria-lhes sempre. Eva achava-o simpático.
Estava na hora do jantar e a mãe acordou o avô. Ficou muito irritado porque estava a meio de algo importante. Eva fechou o piano. O pai tinha chegado a casa. O dia no escritório tinha sido difícil. Beijou as três mulheres e deu tabaco ao avô.
Depois do jantar, Eva saiu. Foi até ao porto. Sentou-se no quebra- mar e aí ficou a ouvir o som da água e a ver a luz intermitente do Farol. Aproximou-se dela um vulto. Era o rapaz das pipocas. Sentou-se e disse: "Gosto muito de vir aqui", ao que Eva respondeu, "Eu também!".
-"Já viste o farol por dentro?", perguntou o rapaz.
-"Não", disse Eva, " mas gostava muito!".
-"Então anda, eu tenho a chave. O meu pai trabalha aqui".
As escadas em caracol subiam até ao céu!
Chegados ao cimo, sentaram-se. A luz vermelha do farol beijava-lhes as faces, o cabelo, a roupa. Eva olhava o rapaz e ao sorrir os seu dentes ficavam rosados. Soltaram ambos gargalhadas!
Eva apontou os seus olhos para o horizonte e fixou-se nos pontos de luz tremeluzentes- eram barcos e estavam todos atentos ao farol onde ela se encontrava.
Começou por imaginar-se num deles. Viu a sua família num salão de festas- preparados para um verdadeiro banquete. O rapaz das pipocas era um paquete. A sua Lolita, com um vestido esvoaçante, pulava de alegria, sempre agarrada à sua boneca. O avô parecia o Popeye com o seu cachimbo. A mãe e o pai dançavam.
Eva quis falar com eles, mas parecia que não a ouviam. Não conseguia entrar naquele mundo que lhe parecia tão real, mas que estava tão distante.
O paquete fixava-a. Parecia que só ele a via, que sabia onde estava. Eva estendia-lhe o braço, mas não conseguia tocar-lhe. Aquilo que ela via não era material. Pareciam fantasmas. O paquete sorriu-lhe e Eva retribuiu, mas parece não ter tido efeito algum.
Eva experimentou a angustia. Sentiu um calor febril como nunca, começou a sufocar até que gritou.
Ninguém se moveu na sua direção. Continuou a gritar...
Era de manhã. Levantou-se, dirigiu-se à cozinha para tomar o pequeno almoço. Estava tudo muito silencioso... Passou em frente ao espelho do corredor para se ajeitar e teve um choque. Em frente ao espelho, a sua imagem não era refletida.
Eva ficou trémula e correu para a sala. Apoiou-se na porta e viu à mesa o pai e a mãe, o avô e Lolita, com a sua boneca, tal como os vira no barco. Olhavam todos para uma cadeira vazia com um ar triste e vago. Eva correu para eles, mas nada aconteceu. Era como se ela não existisse... e a janela abriu-se para deixar entrar a brisa marinha com cheiro a saudade.

  in Contos Selecionados, Sílvia Gil Murça, 31 Outubro, 1994     














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